sábado, 21 de março de 2009

Ruy Lopez de Segura

Poucas Histórias e uma Lenda







Ao longo da história antiga do xadrez houve uma infinidade de disputas para ver quem ostentaria o reconhecimento de campeão do mundo, situação que só foi resolvida em 1886 quando se reconheceu oficialmente o título de Wilhelm Steinitz depois de vencer Zukertort no duelo mais emocionante da época.


Antes disso, existiram campeões “oficiosos”. O primeiro dessa lista foi o espanhol Ruy López de Segura (figura ao lado), nos idos de 1570.
Ruy López era um frei espanhol, nascido em Zafra, em 1530. Pouco se sabe sobre sua vida, mas tudo que se tem conhecimento é relacionado às disputas de xadrez.
A biografia enxadrística começa em 1560, quando viajou a Roma e virou celebridade após derrotar os melhores jogadores italianos, entre eles o jovem Leonardo da Cutri. Lá, conheceu o livro do português Pedro Damiano e criticou duramente o trabalho. Por isso decidiu melhorá-lo.


PRINCÍPIOS DA TEORIA MODERNA


Assim, em 1561, publicou o “Livro da invenção liberal e arte do xadrez”, onde descreveu e numerou, pela primeira vez com alguma profundidade, algumas famosas aberturas que serviram de base à teoria moderna. Até hoje constam nos repertórios de praticamente todos os enxadristas. Por exemplo, lá estavam Giuocco Piano, Gambito do Rei, Holandesa, de fianchetto de Rei e de Dama (ainda não se falavam “Índias”), além, é claro, da que eternizou seu nome: a Abertura Espanhola ou Ruy López (1 e4 e5 2 Cf3 Cc6 3 Bb5), que era a número 9.

Vamos agora ver como Ruy López descreve os lances da abertura 1 do seu livro:
“quando as brancas jogam em primeiro lugar (nesta época não era obrigatório serem as brancas a efetuar o primeiro lance) avançam o peão de rei à quarta casa (1.e4), se as negras jogarem o peão de rei à quarta (1... e5) as brancas jogarão o peão de bispo da dama uma casa (2.c3), se as negras jogarem o cavalo de rei para a terceira fila do bispo para tomar o peão (2... Cf6) as brancas jogarão... etc. Isto dá-nos uma ideia da enorme dificuldade que existia na época para por no papel toda e qualquer criação teórica sobre xadrez.

No entanto, o livro não se limitava a ensinar aberturas. Também trazia alguns conselhos nada religiosos do frei Ruy, afinal a Fide não estava por lá para exigir fair play. Dentre as pérolas sugeridas, aconselhava “ao jogar com dia claro, procure fazer que o inimigo tenha o sol na cara”, “à noite, posicione o lume próximo à mão direita do adversário para que lhe turve a vista e a mão faça sombra quando move, de modo que não veja bem as peças”, “deixe para jogar logo depois que seu rival tenha comido e bebido em abundância e aproveite seu estado de sonolência para vencê-lo”, ...


PRIMEIRO SUPERTORNEIO


No fim de 1574, na corte do rei Felipe II, aconteceu a primeira competição internacional de xadrez documentada. Participaram 2 italianos (Leonardo da Cutri e Paolo Boi) e 2 espanhóis (Alfonso Cerón e Ruy López). Desta vez, o frei venceu apenas seu compatriota, e saiu vencedor o italiano Leonardo, recebendo como prêmio 4000 ducados, uma capa de arminho e 20 anos(!) de isenção de impostos para sua cidade natal, Cutri.

Ruy López faleceu em 1580. Porém, seu nome está gravado para sempre na história do xadrez.



PARTIDAS


A seguir reproduzimos duas partidas dele, além de uma com a abertura que levou seu nome.

Ruy López – Leonardo da Cutri
Roma 1560
Gambito de Rei

1.e4 e5 2.f4 d6 3.Bc4 c6 4.Cf3 Bg4 (Cf6) 5.fxe5 dxe5? (d5)




6.Bxf7+ Rxf7 7.Cxe5+ Re8 8.Dxg4 Cf6 9.De6+ De7 10.Dc8+ Dd8 11.Dxd8+ Rxd8 12.Cf7+ 1-0

Ruy López - N.N.
Madrid 1572
Gambito de Rei

1.e4 e5 2.f4 Cf6 3.Cc3 exf4 4.d4 Bb4 5.Bd3 De7 6.De2 Cc6 7.Cf3 g5 8.d5 Ce5 9.Cxg5 Cxd5 10.exd5 Dxg5 11.g3

Rd8 12.Bxf4 Cxd3+ 13.Dxd3 Te8+ 14.Rd2 Dg6 15.Tae1 Dxd3+ 16.Rxd3 Be7 17.Txe7 Txe7 18.Bg5 Re8 19.Bxe7 Rxe7 20.Te1+ 1-0

G. Kasparov – V. Anand
New York 1995
6ª partida do match pelo título mundial da PCA
Abertura Ruy López

1.e4 e5 2.Cf3 Cf6 3.Bb5 a6 4.Ba4 Cf6 5.0-0 Cxe4 6.d4 b5 7.Bb3 d5 8.dxe5 Be6 9.Cbd2 Cc5 10.c3 d4


11.Cg5 dxc3 12.Cxe6 fxe6 13.bxc3 Dd3 14.Cf3 0-0-0 15.De1 Cxb3 16.axb3 Rb7 17.Be3 Be7 18.Bg5! h6 19.Bxe7 Cxe7 20.Cd4 Txd4 21.cxd4 Dxb3 22.De3 Dxe3 23.fxe3 Cd5 24.Rf2 Rb6 25.Re2 a5 26.Tf7 a4 27.Rd2 c5 28.e4 ½-½

Esta última partida, entre o então campeão do mundo e o atual, demonstra a riqueza de detalhes e opções advindas da abertura que leva o nome de nosso “herói”. Por isso continua e continuará em voga, e nos boletins de partidas de campeonatos mundiais o nome Ruy López será por muitos anos consagrado. Seria um autêntico “caso de marketing” da idade moderna?

A LENDA


Ter vencido os melhores jogadores de sua época valeu a Ruy um alto reconhecimento em seu país e lhe abriu as portas para a corte de Felipe II, de quem se fez professor e amigo íntimo, e por quem foi condecorado com um colar de Ouro do qual pendia uma torre de xadrez no mesmo metal. Conta-se uma história (ou estória) muito interessante sobre seus dias no palácio El Escorial.

Certa tarde em que Ruy López ministrava aulas ao rei, um súdito veio entregar uma mensagem urgente a Sua Majestade porque um condenado à morte, fazendo valer sua condição de nobre, exigia a presença de um bispo para lhe dar a extrema-unção. O problema era que os dois bispos das cidades mais próximas haviam falecido por aqueles dias.

Felipe II nem titubeou, pôs a mão sobre a cabeça do enxadrista e disse “a partir deste momento te nomeio bispo de Zamora e te ordeno que socorre o réu”.

Rapidamente nosso frei, agora ministro católico, se dirigiu às catacumbas. Porém, com muito pesar, descobriu que o detento era seu velho amigo, o Duque de Medina-Sidônia, que foi preso acusado de conspiração. Enquanto conversavam, surgiu a idéia de jogarem uma “partidinha” enquanto esperavam a hora do sacrifício do duque. No tabuleiro se deu uma luta encarniçada entre os contendentes. Quando os sinos bateram 3 da tarde, hora marcada para a execução, o condenado se revoltou: “de nenhuma maneira interromperão esta partida; ninguém entrará nesta cela até que um dos dois consiga dar xeque-mate!” Em meados da noite o duque, quase num último gesto de vida, conseguiu uma posição vencedora, momento em que Ruy López reconheceu a derrota.

Enquanto isso, o rei Felipe II, despachando em seu trono sobre condenações, encontrou uma lista em que aparecia adulterado o nome do Duque de Medina-Sidônia, a quem considerava um súdito leal, e imediatamente ordenou que se verificasse se havia sido feita uma injustiça. Para surpresa do rei, o duque ainda estava vivo, graças à demora que o novo bispo de Zamora teve para obedecer sua ordem. Assim, o xadrez impediu que se tirasse a vida de um inocente.

Acredite... se quiser!

Por Ulisses Kaniak - Palestra no Clube de Xadrez de Curitiba - 18/03/2009.

1 comments:

Cristiano disse...

Olá Sr. Carlos, tudo bem?

Na partida entre G. Kasparov e V. Anand, reproduzida nesta matéria sobre a Ruy López, o lance

2.Cf3 Cf6

deve ser atualizado para

2.Cf3 Cc6

Parabéns pela matéria!

Grande abraço.

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